Telhado de histórias
 



Contos

Telhado de histórias

Ana Márcia Diógenes


Poucas pessoas dão importância a um telhado. Talvez porque pensem que sirva apenas para proteger de sol e chuva. Para Ester, representava algo mais. Era em cima de um telhado que ela via o dia nascer, em todas as férias de verão da sua infância e início da adolescência. Ela e os primos. Uns doze meninos e meninas vinham de suas cidades alegres e atiçados por estarem alforriados dos pais, acolhidos no afeto dos avós. Apertavam os laços de família contando o que haviam feito em casa, na escola, com os amigos, desde a última temporada. Todos os anos, junto com o verão, aconteciam os encontros matinais no telhado. Os avós no início reclamavam, depois lembravam para não ficar ninguém na beirada, não pisar em falso, não quebrar telha.

A meninada fazia quase o impossível para chegar no mesmo dia. Ninguém queria perder qualquer história que tivesse sido contada. Como nem sempre era possível, um deles teve a ideia de que as histórias fossem registradas em um caderno, para que todos soubessem de tudo. Ester foi escolhida para escrever o que era narrado, por ter a letra bonita. Os mesmos desencontros aconteciam no final das férias, porque alguns tinham que voltar antes, por conta do calendário dos pais ou da escola. As histórias eram anotadas por Ester ou por quem ficasse por último, com a promessa de caprichar na letra. O caderno das férias ficava na guarda dos avós.

O telhado dos avós ouviu de tudo. Histórias de brigas dos pais, de irmãos mais velhos implicantes, de alegrias e confusões na escola, de primeiros beijos, de namoros secretos. Como as idades dos primos variavam entre crianças querendo ser adolescentes e estes querendo ser jovens, o passar do tempo parecia não acontecer da mesma forma para todos. As histórias começaram a ser contadas aos pedaços: uma parte coletiva, no telhado, e a impublicável só quando os mais velhos estavam em outra área do sítio. Os registros de Ester nos cadernos iam revelando isso. Dava para perceber algumas narrativas incompletas. Os verões passando eram o próprio registro de como eles estavam mudando.

As histórias que os primos traziam da cidade se juntavam às que viviam nas férias, correndo entre fruteiras, tomando banho de açude, adulados pela comida caseira da vó. O tempo do nascer do sol ficou curto para caber tanta conversa e eles acabaram decidindo ir também no final da tarde para o telhado. A sorte deles é que, no verão, o sol se demora mais. Para evitar que perdessem o arquivo de tantas conversas, os avós providenciavam um novo caderno a cada férias. E guardavam tudo numa gaveta do principal móvel da sala.

Oito anos depois das últimas férias de verão em que participou do encontrão de primos, foi neste móvel que Ester pousou os olhos, ainda inchados pela despedida da avó. Não tinha dúvidas de que ela havia mantido todos os cadernos lá. Para sua surpresa, não estavam. O avô, mesmo abatido, se aproximou. Aquela ocasião, mesmo triste, era a primeira vez que via o marido de Ester e a bisneta Stefany, de seis meses. Só os conhecia pelas chamadas de vídeo. A preparação para entrar na faculdade custou a Ester abandonar o posto de escriba no telhado de histórias. E morar nos EUA, após casar com um americano que conheceu em viagem de férias, dificultou visitar os avós.

Ela teve que adiar vir ao Brasil várias vezes, devido ao trabalho. Depois veio a gravidez e a espera por um momento mais confortável para viajar com a bebê. Quando soube da avó doente, apressou a viagem. Tinha medo de que a saúde fragilizada não esperasse. Chegou ainda a tempo de mostrar Stefany e o marido para a avó, no quarto de cuidados paliativos montado no sítio. O avô a trouxe de volta das lembranças, ao entregar um baú com o seu nome. Um bilhete, dentro do baú, dizia que ela era a guardiã daquelas memórias e que deveria encontrar um jeito de mostrá-las aos primos, de preferência no verão. "Não é sempre que alguém tem um telhado escutador de histórias", dizia o bilhete da vó.

Ana Márcia Diógenes é jornalista, escritora e professora. Escreve sobre comportamento na plataforma de streaming O Povo Mais. É autora da ficção juvenil "De esfulepante a felicitante, uma questão de gentileza" (Ed FDR e Dummar), do conto longo "Pérfuro-Matante", do gênero Domestic Noir, publicado na Amazon, e do livro artesanal "Poesia e contos pequetitos".

Em coletâneas, participa de "Escritas no feminino", que reúne mulheres de cinco países de língua portuguesa; "Tantas palavras" (Ed. Sanhauá) e "Microcontos" (Ed. Persona). Tem textos publicados nas revistas Contos de Samsara, Cassandra e a.galinha.

Integra os coletivos Escreviventes, Autoras assombradas e Mulherio das letras. É apaixonada pelo correr da palavra em todas as suas expressões.

Participa do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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